domingo, 27 de março de 2011

Conto - Os Últimos Dias Antes do Fim

     O som das águas da terrível tempestade retumbava naquela noite onde o frio tomava os corpos dos mais valentes soldados. Tal era o desespero dos homens que lutavam naquela guerra que há anos durava, e nada mais fazia sentido, pois não havia mais ideal algum. Lutavam por lutar; sem compaixão, sem alma, sem humanismo. Não havia lados, somente homem matando homem; seja civil, seja militar...
     No inicio, foram dois lados a se confrontar. Um era formado pelo mais mortal e numeroso exército de toda a história da Terra, comandado por um ser frio e tirano, e o outro, uma resistência que se erguera para livrar a humanidade da prisão sem fim. Mas, tal criatura que buscava o domínio das coisas, era dotada de enorme sabedoria cujo uso era sempre em beneficio do mal. Ele lançou aos homens informações contraditórias e conflituosas que eram divergentes ao ponto de jogar um contra o outro, não importava o lado de ambos. Ora, chegara o dia em que todos se dividiram e a única coisa que importava era um eliminar o outro, até que nenhum dos grupos restasse de pé. O calor que se via nos olhos de cada homem que lutava pela liberdade, transformou-se em ódio pelo próximo; não havia mais razão, a não ser um sentimento desprezível em cada coração. E a criatura que a todos usava como marionete, gargalhava em seu trono. Um plano que há muito havia maquinado, finalmente, prestes a se cumprir. Com a humanidade reduzida a migalhas, um mundo a seu modo seria erigido das cinzas.
     O tiroteio confundia-se com o tamborilar das gotas da chuva e as explosões de granadas e petardos com o rugido de trovões. O soldado abrigado em sua trincheira abraçava forte o fuzil, pois tamanho era o pavor. A pele se via totalmente esfolada e encardida das inúmeras missões que participou. Era um combatente nato em campo e acabava com o inimigo sem piedade. Mas a noite, onde raras vezes sua mente esfriava, desabava em choro e o medo o tomava, o fazendo desejar em muitos momentos a própria morte. Porém, uma morte rápida e sem dor. A cada clarão de relâmpago, via entre os destroços de maquinários bélicos e ruínas os corpos de seus companheiros. Corpos e mais corpos empilhados, mutilados no calor de cada batalha.
     Pobre do combatente que até o próprio nome esquecera. O fardamento  não passava de um trapo velho, sem distintivos e nem sutache o identificando; nada de medalha no pescoço. Embora recordasse de seu numero enquanto recruta: 335, ou 35, como seu líder de pelotão o chamava. Nessas horas, vez ou outra 35 sorria, pois tamanha era a diversão em seu tempo de caserna. Todos os amigos unidos numa época onde o campo de batalha não passava de uma simples curiosidade e algumas vezes vontade daqueles que mais vibravam. Coisa que não custou tanto tempo para se tornar arrependimento. Os que mais vibravam, menos tempo duraram em batalha. Todos aqueles que 35 considerava irmãos, se foram. Mortos em campo; pelo menos dois deles o paradeiro é desconhecido. História semelhante ocorreu com os novos companheiros que 35 encontrou após a dizimação de seu agrupamento. Tais fatos sustentavam os objetivos sinistros do Senhor que buscava o domínio absoluto.
     35 despertou e já era dia. Estava surpreso, já que há semanas não dormia como naquela noite. A sua volta uma densa bruma encobria o cenário caótico. Suas pernas estavam atoladas na lama dentro da trincheira. O combatente movia-se com cautela e silencio. Tirou o barro do fuzil e desentupiu o quebra-chama que também afundou na lama. De dentro da mochila impermeável, tirou um rádio – um dos dois únicos de seu esquadrão. Sintonizou numa freqüência segura e acionou o PTT.
     ─ Rato, aqui águia, câmbio... ─ ele chamou o companheiro abrigado a poucos metros de onde estava. Ninguém respondeu o preocupando. ─ Rato, rato, aqui águia. Está na escuta?
      ─ Na escuta, águia. ─ disse a voz.
     ─ Vocês também dormiram essa noite? ─ aliviado em ouvir o companheiro, perguntou em comentário. ─ Eu não acredito no que aconteceu; parece que, de repente, a guerra terminou...
     ─ Há, há! Não tenho seu otimismo, infelizmente. ─ o radio-operador caçoou das palavras de 35 que mostrava um fio de esperança, mas que não passava de uma sutil sombra de sua vontade.
     ─ Entendo. ─ conformou-se muito abatido. ─ Vamos sair desse lugar, antes que alguém apareça. Agora, não faço idéia para qual lado estão. ─ admitiu olhando a redondeza.
      ─ Nem nós sabemos. O nevoeiro está demais.  
     ─ Bem, sendo assim, tente fazer algum ruído. Podemos nos localizar dessa forma. ─ sugeriu 35.
      ─ Não sei se seria uma boa idéia. Podemos chamar a atenção do inimigo.
     ─ Fato. Mas não temos escolha. Faça qualquer coisa, bata uma pedra no capacete ou algo do tipo.
     ─ Que seja, então. ─ o vulgo rato pegou então uma rocha do tamanho de seu punho e a levou de encontro ao seu capacete em batidas cadenciadas. Era como um pica-pau se alimentando dos insetos que se escondiam sobre as cascas das arvores que bicava freneticamente.
      35 aguçou a audição percebendo que o som vinha do sul, a sua direita. Entretanto, outro ruído lhe chamara a atenção. E ele logo contatou o radio.
     ─ Rato, cesse as batidas agora mesmo! ─ disse apavorado.
     ─ O que houve? ─ o operador questionou preocupado.
     ─ Escute... ─ 35 quase sussurrava.
     Era um ruído sutil, como de pedras rolando no chão duro. Ao mesmo tempo, um zumbido igualmente silencioso. 35 afundou-se no barro, só deixando o rosto sujo e o fuzil pra fora. O radio começou a chiar, então. O combatente entrou mais ainda em pânico quando tentou contatar o companheiro e não obteve êxito. Rapidamente alterou a freqüência e chamou pelo codinome “raposa”. Mas o equipamento ainda se via com interferência. E fechou os olhos prendendo a respiração para manter-se despercebido. De repente, tiros! 35 arregalou os olhos, mas não se moveu devido ao choque. Mil imagens passaram por sua mente o debilitando. A coragem não o tomava mais como antes. 35, então, por puro instinto reagiu em virtude dos companheiros. Saiu da lama e rastejou-se pelo chão com o fuzil carregado em direção aos tiros. Embora, não demorou muito e tudo silenciou como há pouco. 35 também parou diminuindo a respiração e posicionando o armamento para a eventual aparição do inimigo. Nada se ouvia. Até que o som de passos se arrastando lhe atingiu os ouvidos. Estava caminhando em sua direção, mas nada via em função do nevoeiro. Fez a pontaria, então, até que a imagem de uma silhueta projetou-se a frente. A pessoa se aproximava lentamente; seu andar era como de um zumbi. 35 permaneceu mudo somente aguardando o individuo chegar a certa distancia para que fosse feita a identificação. O dedo indicador já pesava sobre a tecla do gatilho e os pulmões fechados, cheios até a metade para o tiro certeiro. Porém, logo amoleceu o dedo e liberou o ar do peito quando reconheceu o amigo Carlos, a voz do outro lado do radio. Seus olhos se arregalaram quando viu o estado que estava o companheiro. Seus braços mutilados pela metade, um furo no abdome e a face dilacerada com dentes e cartilagem nasal expostos. Muito sangue jorrava deixando para trás um extenso rastro vermelho. Carlos gemia de dor agonizando pela morte e 35 sem nada poder fazer. Nem chamar por socorro podia, pois denunciaria sua posição ao inimigo. 35 ameaçou se levantar a fim de acudir o amigo, mas nesse momento, um plasma incandescente rasgou Carlos pela metade, onde seus órgãos viscerais caíram sobre 35 que cobriu a cabeça ouvindo o zunir do disparo passar por cima de si e em extremo desespero se atirou de volta ao buraco de lama de onde saíra.
     35 fechou os olhos pressionando as pálpebras com extrema força e tentava conter a crise de tremedeira. Novamente passos caminharam em sua direção, embora dessa vez, mais pesados. O chão tremia ao som de maquinas caminhantes, era como o som de tambores cadenciados e um zumbido agudo. O gigante de metal parou ao lado do abrigo de 35 e vasculhou os arredores. Eles tinham equipamentos bem desenvolvidos, entre eles, células sensíveis ao calor. 35 sabia disso e afundou-se completamente na lama fria. Seu medo era incontrolável, mas o instinto de sobrevivência sobressaia. Através de magnetismo, a maquina tomou o fuzil dos braços do combatente chafurdado no barro e tudo que havia metal sobre aquele terreno. 35 permaneceu imóvel e esperou, até que sentiu as passadas do andróide se distanciando.
     O sujeito se levantou após minutos e viu que a bruma se dispersara. O cenário era o mesmo de todos os dias; maquinarias destruídas, prédios em ruínas e corpos, muitos corpos espalhados por todas as partes, inclusive de seus companheiros, estes, como sempre, temporários. Menos 35, que ainda se mantinha vivo, como uma maldição que começava a achar que era. Ele ainda desejava sua morte, rápida e sem dor, no fundo. Mas seu corpo o impedia; talvez pelo fato de jamais ter presenciado um companheiro seu morrendo de tal forma. O que conhecia, era somente mortes semelhantes a de Carlos, terríveis e dolorosas, como que pela vontade daquele ser que tudo de ruim causou naquela época. Seus exércitos de maquinas e de homens – cujos estes não sabem mais a qual lado pertencem – pareciam ser programados para causar dor e agonia, tornando a morte a realidade mais confortante e prazerosa de todas.
     E 35 seguiu sem rumo como foi nas vezes anteriores. Somente com a farda completamente destrinchada e suja, a procura de novos focos dos seus para assim continuar aquela guerra sem razão e nem ideal; uma luta em função da sobrevivência individual, pois dar o sangue pela vida dos companheiros já se tornava algo indiferente, um sinal de que a vida humana se via cada vez mais desvalorizada naqueles últimos dias do Juízo Final, onde um dos Príncipes das Estrelas reinava em soberania.






















FIM.   

4 comentários:

  1. É tão bom ler algo em blogs que não seja garotas e garotos em depressão ou qualquer baboseira romântica.

    belo trabalho em seu conto, realmente muito bom, me surpreendeu em todos os aspectos.

    Parabéns.

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  2. Valeu pelas considerações Demétrios. Estou desenvolvendo uma sequencia e provável mini série... basta aguardar que darei um bom up grade no blog.

    Abraços!

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  3. Caro, você escreve muito bem. Adorei as histórias! Só me deixa inquieto é, o que te fez seguir meu blog? rsrsrs Você escreve bem, continue e vá divulgando!

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  4. Valeu, Lucinei!! Pode acreditar que minha cabeça fica o dia todo pensando em histórias... pena que o tempo tá curto, no momento. Em relação a eu tornar seguidor do seu blog... bom, acho que o encontrei em alguma comu do orkut, não lembro, mas a real é que meu interesse é leitura e também uma ótima estratégia de divulgação e interação com a galera que curte a literatura rrs..

    Abraços!! E aparece mais...

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